27 novembro 2006

A Deslocalização Do Piano

A esquerda quer editar uma lei que proíba que as empresas se instalem onde produzem melhor e onde ganhem mais dinheiro. Compreendo. As empresas e a esquerda. As empresas, porque na economia manda a aritmética. A esquerda, porque cada vez que uma empresa vai embora, apesar de ganhar capital de queixa social, perde delegados sindicais, comissões de trabalhadores e créditos de horas para a militância do protesto. Nunca se viu, não sei porquê, o desemprego ser um alfobre de sindicalistas.

Mas na cultura, certa esquerda age ao contrário. Deslocaliza. Parte. Emigra. Foge da Pátria. Os portugueses emigraram muito na década de sessenta e setenta do século passado. Para ganhar mais dinheiro, confessavam, então com simplicidade. Com o tempo, a emigração portuguesa tornou-se uma emigração de luxo. Hoje, emigram os cérebros, como se diz na tecnocracilândia e os futebolistas, não querendo com isto dizer que estes não têm cérebros. Mas fazem-no pela mesma razão que a primeira geração de emigrantes. Para ganharem mais dinheiro.

Na cultura, emigrou há uns anos Saramago. Suspeito que por amor e por panache. O amor não se discute. Quanto ao panache, tem um certo chique morar numa ilha vulcânica e falar castelhano. Depois dos saneamentos gonçalvistas de 1975 que fez como comissário político do PCP no Diário de Notícias, achou a Pátria curta para tanto talento e foi-se. Neste caso julgo que a Pátria não foi excessivamente lesada. Ademais, o homem vem cá dizer uns disparates de vez em quando, para não perder o número de contribuinte.

Agora, emigrou a pianista Maria João Pires. Mas desta vez, o facto merece análise mais profunda. A senhora, assim uma espécie de Saramago do piano (embora, é justo reconhecer, seja muito melhor no piano do que Saramago nas letras), denunciou ser “vítima de uma verdadeira tortura”. E foi-se. Para fugir aos “malefícios de Portugal”, seguiu para o Brasil, onde como é sabido não há corrupção de esquerda, insegurança de esquerda e favelas de esquerda. Há até fome de esquerda, atento o fracasso do plano Lula para a fome zero. O Brasil, pois, um país que não tortura ninguém. Ah, é verdade, e também não há Morangos com Açúcar, só há telenovelas.

Porquê torturada? Não disse. E aqui, abre campo ao galope das suspeitas. A pianista criou um louvável projecto cultural e musical em Belgais, no interior esquecido e ostracizado. Óptimo. Estudar e exercitar as artes é bom em qualquer lado, mas em Castelo Branco é certamente, além de original, necessário.

Pediu ajudas. Compreendo. E teve-as. Teve o apoio dos ministérios da Educação e da Cultura, da Câmara Municipal de Castelo Branco, de um banco espanhol, a Caja Duero, da Fundação Avina e da Yamaha Pianos. Só o ministério da Educação, a título de financiamento dessa experiência pedagógica e educativa “alternativa”, desembolsou 1,8 milhões de euros, pagos em 24 prestações trimestrais. O ministério da Cultura foi mais contido: há três anos forneceu 65 mil euros, através de dois institutos públicos da respectiva área, mas como as despesas não foram justificadas (maçadas!), cortou-se no bodo.

Ninguém percebe, assim, em que consistiu a tortura. O que faz com que a atitude da pianista sobressaia incompreensível e, como tal, ou gratuita, o que uma artista do seu calibre não fazia antever, ou despeitada e vingativa, o que é feio. O que quereria Maria João? Rubrica específica e vitalícia com o seu nome no Orçamento? Não haveria piano que aguentasse, porque as teclas quando nascem são para todos…
Jorge Ferreira
In Nova vaga, nº 5

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