27 novembro 2006

O Estado E A Igreja

O Estado-vanguarda e a Igreja em Portugal.
(Uma perspectiva histórica)

"Só ao Estado compete formar os espíritos, só a ele pertence modelar as forças vivas da nação. Só ele sabe fazê-lo e só ele tem recursos para o fazer." Miguel Bombarda, A Reacção em Portugal

1
As palavras em epígrafe, da autoria do republicano Miguel Bombarda, apresentam uma concepção do Estado que, à partida, desapareceu do horizonte político. Esta forma vanguardista de Estado não podia conviver pacificamente com o poder espiritual exercido pela Igreja Católica sobre o povo português.

Este artigo tem por base dois casos separados por quase oitenta anos, que ilustram a tensão entre o Estado-vanguarda e a Igreja: o primeiro, o “cisma” no clero católico entre 1833 e 1841; o segundo, mais conhecido, a I República (1910-1926) e a sua política laicista e anticlerical. Começarei por apresentá-los de forma sucinta, para depois expor algumas reflexões sobre a relação entre o Estado e a Igreja.

2

Ainda antes da assinatura da Convenção de Évora-Monte, o governo da regência de D. Pedro aprovou leis que iam ao encontro do carácter racionalista e secular do liberalismo oitocentista, e do reforço do poder do Estado em relação à Igreja.

Em 1833, formou-se a Comissão de Reforma eclesiástica, que impôs a substituição da antiga hierarquia católica, por vigários capitulares eleitos pelos cabidos sob injunção governamental. No ano seguinte, o Ministro da Justiça, Joaquim António de Aguiar, dentro de uma lógica anticongregacionista, fez aprovar a supressão das ordens religiosas e o confisco geral e absoluto dos bens de “mão-morta”. No início de Julho, os Jesuítas foram expulsos.

Este era um cenário de afirmação do Estado liberal cuja raiz ideológica iluminista justificava a necessidade de colocar a Igreja ao serviço do progresso humano, e de afastar aqueles que haviam apoiado o “partido” miguelista. A Igreja, um dos pilares do regime absolutista derrotado, tinha agora que se adaptar aos novos tempos, nem que para isso se substituíssem os “maus” padres por párocos fiéis ao regime liberal.

Estas medidas agravaram as relações entre o Estado português e a Santa Sé, levando mesmo à ruptura ainda em 1833. Desde então, a oposição aos liberais (miguelistas e parte do clero) fez circular a ideia de que o Papa havia declarado cismática a Igreja portuguesa. Perante o perigo de excomunhão, populações das dioceses de Braga, Porto, Bragança, Viseu, Aveiro e Coimbra, recusavam participar em actos de culto oficiados pelos novos párocos ou expulsavam os padres “liberais”. O governo respondeu através da ocupação militar das comunidades revoltadas e da imposição da presença dos fiéis nos actos de culto católico obrigatórios segundo a Igreja Católica, sob pena de processo judicial.

A reacção do governo foi apodada de “atentado à liberdade de consciência religiosa” pelo deputado miguelista Caetano Beirão, ao que o Ministro do Reino, Costa Cabral, respondeu tratar-se de uma questão meramente política, de reconhecimento da autoridade legítima e de obediência à lei.[1]



3

Para os republicanos chegados ao poder em 1910, havia um obstáculo fundamental à construção da democracia – a ausência de uma opinião pública consciente. Tornava-se, portanto, urgente libertar o povo da influência da religião católica que impedia os indivíduos de se tornarem cidadãos. Era preciso expulsar Deus da Constituição,[2] expulsar de novo as ordens religiosas que haviam voltado a entrar no País desde os finais da década de 50 do século XIX, e que tinham um papel importante no campo da assistência e do ensino, enfim, era necessário separar completamente a religião da política, entregando ao Estado as funções de formação moral e cívica dos indivíduos. As opções e as práticas religiosas eram remetidas para a esfera privada. E assim se fez. Foi publicado o decreto de separação das igrejas do Estado (20 de Abril de 1911), ordenada a expulsão das ordens religiosas, reconheceu-se o divórcio, impôs-se o registo civil obrigatório e a aconfessionalidade do ensino, extinguiu-se a Faculdade de Teologia e aboliram-se os juramentos religiosos. As manifestações exteriores de religiosidade (procissões, funerais, etc.) foram também condicionadas. Com esta legislação, os republicanos fizeram uma ruptura com a forma como a religião e a política se relacionavam, remetendo as opções religiosas, e neste caso particular, o catolicismo para a intimidade de cada indivíduo.

Estas medidas provocaram a reacção da hierarquia católica, mas principalmente das populações rurais de forte sentimento religioso. A real dimensão desta resistência que implicou que o Estado, tal como no século passado, recorresse ao envio de tropas para as localidades insurgentes, ainda não é conhecida.[3] Sabemos, isso sim, que o vanguardismo republicano acabou por voltar contra o regime largos sectores da sociedade portuguesa.

4

Quer os liberais do século XIX, quer os republicanos do século XX eram ideologicamente descendentes do Iluminismo que considerava que a História era um progresso constante. Para os philosophes, o homem tinha a capacidade de progredir até alcançar a perfeição através da Razão. O homem novo nascido desta inevitável evolução seria um homem liberto das peias do obscurantismo e da superstição, frutos da ignorância e do poder da Igreja. Este era um obstáculo ao desenvolvimento e ao progresso e, necessariamente, ao cumprimento do destino da História – alcançar a Felicidade.

Esta meta só poderia ser atingida através de um Estado interventor. Cabia ao Estado mudar as consciências, “formar os espíritos”, nas palavras de Miguel Bombarda. O Estado devia erradicar a religião irracional, para implantar o Império da Razão, condição fundamental para a concretização do progresso humano. O Estado tornava-se a vanguarda nesta luta pelo controlo das consciências. Para triunfar, o Estado não podia respeitar a autonomia e a auto-suficiência da sociedade civil.

Foi esta concepção do Estado que predominou durante o período jacobino da Revolução Francesa, e que liberais e republicanos tentaram adaptar a Portugal. Menos acentuado no primeiro caso, dado que a Carta Constitucional de 1826 definia o Catolicismo como religião do Reino, e devido às cedências a que os sectores mais radicais foram forçados. No Código Penal aprovado em 1852, estabeleceram-se mesmo penas para crimes cometidos contra a religião do Estado. Na República, pelo menos nos seus primeiros anos, o vanguardismo do Estado foi evidente. Considerando o povo presa fácil do obscurantismo religioso, tornava-se forçoso que o Estado assumisse a tarefa de o “iluminar”, de lhe mostrar a “verdade” da Razão e assim criar o homem novo. Não bastava remeter a religião para a esfera íntima, era necessário extirpá-la das consciências.

Esta concepção do Estado vanguardista, no limite, destrói o indivíduo, submete-o ao seu totalitarismo ideológico. Ao pretender suprimir a religião da vida pública e, afinal, da vida privada, contribui para a perda de valores fundamentais, para a afirmação do relativismo moral. Não viveremos nos nossos dias sob uma nova versão deste Estado-vanguarda, mais subtil, é certo, disfarçada sob o glamour das novas tecnologias e de discursos aparentemente despidos de ideologia?


Rui Manuel Brás

[1] Cf. Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira, “Liberalismo, religião e política: o ‘cisma’ da Igreja Portuguesa e a questão da tolerância religiosa”, Ler História, nº33, 1997, pp.97-114.
[2] Fernando Catroga, “O Republicanismo em Portugal”, p.202.
[3] O historiador David Luna de Carvalho desenvolve presentemente um estudo sobre este tema com vista a tese de Doutoramento.

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